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Passamos vidas inteiras desesperadas, embrenhados em problemas e ponderações, em análises detalhadas do quotidiano e reflexões exacerbadas de quem somos, canalizando paixões para esta compulsão doente e humana que é encontrar o sentido da vida. Encontrar um sentido qualquer que seja, uma explicação profunda e inconsciente para tudo o que é, o que se vai fazendo, o que nos acontece, o que pensamos.
São dias, semanas, meses e anos em que não evitamos sentirmo-nos dormentes ao Tempo – de tanto método e ciência perdemos a capacidade inata de desfrutar a Graça de Viver, os dons que nos são paulatinamente dados. Desperdiçamos talentos e vocações, apagamos chamas criadoras para não nos distrair desta psicose louca, de nos prepararmos para uma vida que nunca chegamos bem a viver. Para quê? Para dar desculpas aos pequenos vícios, alimentar com justa causa a nossa preguiça, estimular a insensibilidade ao pequeno – porque nada nos satisfaz, de tão óbvio que se nos torna a intenção por detrás.
Às tantas, de tantas camadas de essências que ansiamos por tornar nossas, escondemos o que é de basilar e sublime. O Homem vai-se perdendo, e como está é uma designação vasta – de uma tamanha nobreza impessoal, que até requer maiúscula – esquecemo-nos de quem "ele" é: cada um no seu contexto, no seu plano natural, com as suas características e personalidade. Porque todo o conjunto parte de vários unidades individuais, neste caso, de vida.
Vamos burocratizando tudo, sistematicamente, num desenfreado de organização, catalogando a mais pequena peça do jogo da nossa vida. As definições, do que sejam, passam a ser tão específicas que nos restringem ao ponto de elas deixarem de ter significado e utilidade. As sensações, por serem ontológicas, tornam-se inválidas. As percepções, por passarem por filtros pessoais, consideram-se distorções da realidade. Os raciocínios, pelo esforço mental que pressupõem, são demasiadamente obscuros e exigentes para serem aceites.
Por calcularmos tantas médias, elaborar tantos padrões e perfis, tentamos chegar ao chamado “ponto de equilíbrio” – evidentemente anormal e suspeito, dado que somos uma combinação incandescente de características diversas –, e recatados nesta tentativa de encaixar, contentamo-nos ao sonhar com originalidade.

Acostumámo-nos ao formigueiro de quem tanto se preocupa em sentir, que nada sente. Percorremos mil caminhos, lemos mil livros em busca de um algo que identificamos prazer – que de tão racionalizado, não é nada –, e fugimos tanto à dor que esquecemos o valor do sofrimento, como elemento construtivo.
Estamos numa sociedade que de Ser não tem nada, que se fechou numa redoma em que nada sente, e que de tal modo se afogou em restrições que não tem espaço nem tempo para respirar a brisa fresca da Razão, das construções mentais com o que de relativamente certo nos advém.

Fomos roubados, tiraram-nos tudo! Até as crenças, até a esperança, num turbilhão de nadas que nos paralisam. A única força profunda e modificadora, que ainda tem a capacidade de nos moldar, é o anelo visceral e uterino que nesta caminhada sempre nos acompanha, necessário à certeza de que estamos condenados à nossa incompletude, inacabados, que nos sempre faltará algo que nunca língua nunca será capaz de pronunciar: a nossa maior ambição ganha corpo numa incógnita, que é comum a todos os que pensam. O que é então o desejo humano de que todos comungamos?
Igualdade? Justiça? Fraternidade e comunhão? Paz? Felicidade? Perfeição? A Verdade? Tantos conceitos puros que hoje se ficam pelo papel, sobrevoados por ideias distintas e contrárias do mesmo Ideal último ainda não experienciado.
Soterrados debaixo de preceitos (e preconceitos) que pesam, debatemo-nos, revoltamo-nos em vão,... sem a conclusão nenhuma chegar. Nem do que é, nem de como o obter. Contudo, é esta a inconveniência que nos atormenta: a certeza expressa, ou mesmo que amordaçada, implícita, de que não nos bastamos e assim o é, pelas condicionantes atávicas da nossa própria humanidade.
Alguns desistem. A maioria, contudo, prefere deixar-se cair num laxismo que se traduz na adicção (qualquer que seja) de modo a viver numa dormência infernal que nos distrai dos nossos próprios desígnios... Ou não é todo o vício uma distracção?
Contudo, há os que persistem, aproximando-se perigosamente do seu objectivo – o da derradeira e intemporal busca humana, pelo cerne amorfo comum e partilhado e que, sem o viver, todos conhecemos. O Mistério final, inicial, que tudo envolve.

Não digo que algum dia vamos encontrar aquilo, o precioso “aquilo” de que todos estamos à procura, e não tem nome. A religião, a filosofia, a psicologia, a sociologia, todas as "ias" do Mundo e seus teóricos se debatem em reflexões e contra-reflexões milenares, para o definir... Mas num dia, um longínquo próximo dia, vamos acordar para a vida; para realizar que temos tudo o que é preciso. E através do cumprimento recto do Dever – do que tem de ser feito, de tudo o que de bom podemos – aí, chegaremos, em pleno, à Felicidade, à Perfeição, ao Espírito. Nesse dissipar transcendente de trevas e Luz, nesse momento em que o conceito onírico do que, para o comum dos mortais é real, se clarifica e desabrocha num estado atento de vigília; só e apenas aí percebemos que o que importa: a procura, a paixão, é o desejo maravilhoso de nos ultrapassar em cada momento, e o esforço que colocamos para o fazer. Porque se nada me falta se em tudo o que faço e com tudo o que me acontece agir verdadeiramente, pondo aí tudo o que tenho e o que sou, torno-me. Ultrapassar a mera existência é partir do sobreviver para a Vida.
Nesta trilogia "sobrenaturalmente humana" de Amor, Fé e Dever, expresso numa fortaleza individual interior inalienável, nos Tornamos. Tal é a aspiração máxima de existir: libertar-se quando se dignifica; dignificar-se na sua libertação.
Liberdade absoluta é, com os elementos que nos são e vão sendo impostos, as coacções biológicas, psicológicas e sociológicas, (num uno indivisível e fantástico de quem somos), lutar pelo melhor. Construirmo-nos a nós e ao nosso meio. Ver sintetizado um Todo que dividido seríamos incapazes de compreender. O objecto, qualquer que seja, é moldado por quem o capta.
O único objectivo e simultaneamente obrigação da nossa existência é, desta maneira e de todas as formas, Ser. E consciencializar a nossa própria transcendência é escolher a Felicidade, todos os dias.
Sem dificuldades e sem o peso da nossa efemeridade, valeria mesmo a pena viver? Não. A finitude, a falibilidade, são os instrumentos de dignificação da pessoa.
Citando Churchill: success is going from failure to failure without losing enthusiasm.

publicado por Francisca Soromenho em http://posturadeestado.blogs.sapo.pt/

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